Teresa Moure: «Uma autora que abandona a literatura oficial para se situar nas margens não é amável»

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Teresa Moure | Foto: Eduardo Castro Bal

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Teresa Mou... re | Foto: Eduardo Castro Bal

Ostrácia (Através Editora, 2015) é a mais recente obra da escritora Teresa Moure. A protagonista de Ostrácia é a revolucionária bolchevique Inessa Armand (1874-1920), russa de origem francesa. Após o seu matrimónio com um proprietário rural da alta burguesia com quem teve quatro filhos, subverteu todas as normas da sua sociedade ao se juntar aos 28 anos com o seu cunhado, de 17, com quem tem o quinto. Lutadora incansável, feminista, é enviada ao pior dos ostracismos, o Ártico, porque na sua casa se celebravam reuniões anti-czaristas e se encontraram leituras marxistas.

À volta do exílio, ingressa no Partido Bolchevique onde chega a ocupar altas responsabilidades. Inessa Armand, mulher de nome esquecido, foi capaz de romper todas as convenções para construir um mundo novo. No entanto, apenas é lembrada com uma frase: «a amante de Lenine».

Acerca de Ostrácia, da Inessa e da Teresa —porque algo de autobiografia também há neste romance—, conversamos na presente entrevista com a autora.

Não é habitual a génese da história ser parte da própria história. Porque este recurso em Ostrácia?

A cápsula do romance histórico está superada, acho. Que alguém sente a escrever sobre a vida e milagres de gentes do passado, embora calme a angústia do presente, tem um ar hagiográfico perigoso. Cada ano publicam-se centos de romances históricos que se, ademais, versam sobre mulheres apagadas da história, têm o público assegurado. Mas essa revisão pode ser mesmo reacionária; serve para deslocar-nos do presente, que é o que temos a obrigação ética de mudar. Por isso, à hora de escrever sobre personagens  «reais», e com alto valor simbólico, pensei que havia que romper o subgénero do romance histórico e deixar entrar as dúvidas de quem se está a documentar. Como há muita incerteza e falta de concordância entre as biografias de Inessa Armand e de Lenine, como é impossível, aliás, saber o que realmente aconteceu na sua intimidade, uma maneira de evitar que o romance exigisse uma erudita leitura historiográfica era introduzir no relato os próprios problemas que teria uma autora à hora de empreender o seu trabalho. Isso evita a ótica omnisciente e concede profundidade ao assunto da receção, porque eu sabia que um romance sobre leninismo afastaria muit@s hipotétic@s leitor@s da Ostrácia. O leninismo não é amável. Uma autora que abandona a literatura oficial para se situar nas margens também não é. Sabendo que Ostrácia ia ser recebida e interpretada nesse contexto, pensei que estava obrigada a ter a coragem de contar tudo isso. E introduzi uma personagem parcialmente autobiográfica –em parte um piscar de olhos a quem conhece a autora– para assim situar-me à mesma altura de Lenine e Armand. Se eu ia farejar na sua intimidade, o qual é delicado, exibir umas supostas vulnerabilidades minhas era o único exercício eticamente coerente.

Ostrácia é um  «ajuste de contas» com a história que apaga ou, no mínimo, assombra a figura de Inessa Armand, mas também ajusta outras dívidas…

Susana Arins entrevista Teresa Moure (fantasiada de Inessa Armand) durante o Culturgal 2015

Susana Arins entrevista Teresa Moure (fantasiada de Inessa Armand) durante o Culturgal 2015

Sempre que um ser humano é interpretado como personagem, por intranscendente que for essa condição de personagem, passa por uma etiquetagem. As etiquetagens são preconceitos e, portanto, negativas. É bastante evidente que a Inessa Armand, com um pouco que se pesquise sobre ela, era uma mulher adiantada ao seu tempo. Após ter casado com um homem de certa posição social e ter quatro filhos com ele, após ter fundado algumas sociedades protofeministas, um dia deixa que a casa vá pelo ar simplesmente porque namora… do seu cunhado, treze anos mais jovem do que ela. E vai embora com ele, mantendo os filhos e filhas consigo e conservando sempre uma magnífica amizade e cumplicidade com quem fora o seu marido. Mas torna-se numa mulher de péssima reputação, ao conviver com Volódia, numa relação que se manterá até a morte dele. Nessa época entra a fazer parte do partido Social-Democrata e tem uma atividade política de escassa intensidade, do ponto de vista revolucionário –na sua casa imprimia-se propaganda marxista e organizavam-se reuniões anti-czaristas, não muito mais–. Porém, isto é suficiente para a Okhrana, a polícia czarista, a enviar quatro anos para Mezem, como desterrada, como presa política. Só depois de todos estes episódios é que conhece Lenine e inicia essa relação que se narra em Ostrácia. Embora desempenhe importantes cargos na cúpula bolchevique e no governo revolucionário, Inessa Armand apenas vai ser conhecida, e pouco, como  «a amante de Lenine». Não se trata, então, de que eu pretendesse fazer uma leitura em chave feminista, onde se revisasse a sua importância na história da revolução russa; a sua condição de deliberadamente esquecida está fora de dúvida. Foi apagada conscientemente no período estalinista para não sujar a imagem de Lenine. Mas ao narrar e atrever-me a romper a cápsula do género de que falávamos antes, saíam algumas conexões engraçadas entre a Inessa e eu, biográficas e psicológicas, e eu notava essa identificação. Inessa teria desejado uma segunda oportunidade, teria desejado, acho, que não só lhe correspondesse fazer os trabalhos sujos da política, e também que Lenine rompesse com a Nádia por ela. E a autora inevitavelmente via-se obrigada, à medida que reconstruia o relato histórico, a pensar em si própria como autora que estava a dar uma segunda oportunidade ao romance histórico com protagonista feminino e tinha, para ser tão coerente como a Inessa, que explicar a sua posição frente a algum texto que escrevera, de que não renegava em absoluto, mas que fora incorretamente etiquetado como  «narrativa histórica feminina».

Inessa Armand, protagonista de 'Ostrácia'

Inessa Armand, protagonista de ‘Ostrácia’

Eu escrevi Herba Moura e continuo a identificar-me com esse texto. Mas também tenho que enfrentar a realidade: nunca me será permitido nesta sociedade escrever outro texto que seja considerado «tão bom como» Herba Moura. Por ser reintegracionista, evidentemente, percebo como o que escrevo agora tem muitas mais dificuldades para se abrir passagem. Agora a minha escrita pertence a uma dissidência política que já tem nome. Está bem: era algo que assumi quando decidi vir para o lado escuro das normativas ortográficas. Não posso concorrer a prémios porque cometo o delito de escrever com  «nh», que é um delito coletivo de todo o reintegracionismo, mas no meu caso tem o agravante de ter renunciado a uma certa consideração oficial. Não é assim tão fácil agora ser traduzida nem participar dos saraus da cultura, embora também não estou a chorar: o movimento reintegracionista há de conseguir a sua visibilidade em pouco tempo. Mas provavelmente sucederia igual se não tivesse dado esse passo. Para além de Herba Moura, publiquei outras 20 obras, por isso é estranho para mim quando chego a um sítio e sou mencionada como a autora desse romance, como se o texto me tivesse devorado… É que todo o pessoal gosta de romances histórico-feministas? Estranho! Outros textos mais elaborados, traduzidos também a outras línguas, não são mencionados nunca. Não gosto, por recato, de expor este tipo de dados mas é possível que o reintegracionismo precise fazer análises detalhadas e agora que o Mário Herrero está a ser tão valente, vou tentar apoiar a sua reivindicação sem falso pudor. Sou a autora de Herba Moura, mesmo se publiquei em todos os géneros literários, se me dediquei por duas vezes a um género tão pouco tratado por autoras femininas como o teatro, se uma obra de teatro minha para além de vários prémios, conseguiu ter toda uma temporada de representações continuadas em muitas vilas galegas a cargo duma companhia prestigiosa como Teatro do Atlántico ou se escrevi seis ensaios, dois deles ganhadores do único prémio de ensaio em galego. Se esse apagamento do resto do que estou a escrever fosse por um assunto de qualidade, ficaria descansada. Mas é que Herba Moura gostou porque recebeu uma leitura domesticada, como se fosse politicamente correto aceitar alguma vez um romance alternativo em chave moderadamente feminista, quando a meu ver as distintas edições, não necessariamente a de Xerais, foram acusando uma castração que pode comprovar-se no desenho da capa, no título ou na mutilação parcial do texto nas diferentes traduções; algo que a crítica, superficial, contribuiu a acrescentar. Havia razões para revistar o meu ponto de vista que alerta contra as censuras do nosso sistema literário e contra as suas manipulações. Finalmente, tentar que seja aceite o próprio ponto de vista é uma tática leninista. Há uns dias saiu uma crítica de Ostrácia onde o caro Mário Regueira declarava que eu tentava impor a minha leitura sobre a tensão da receção. Era atinado. Mas surpreendia-me que Regueira não advertisse o jogo: se escreves sobre Leninismo, tens que procurar essa hegemonia: erradicar os mencheviques. Não ficava outra possibilidade; fazia parte do projeto como jogo literário.

E porque Inessa Armand? Certeza que mais vezes te tentaram com  «mulheres bravas». Porque esta?

O meu filho Brais foi quem sugeriu e eu sempre obedeço os conselhos que me dão os meus filhos porque sei que vão criando-me como podem, que tenho uma natureza mais jovem e rebelde do que eles. Digamos que tinha que saber mais de leninismo para manter-me ativa nas conversações em casa…

A Inessa também foi uma mãe um pouco punk… Porque escolher a Várvara para (ré)construí-la?

Como eu detesto os narradores omniscientes, havia que procurar alguém que tivesse algum motivo pessoal para pesquisar no passado. De todos os personagens históricos próximos a Inessa, a Várvara era o idóneo, pensei eu. A historiografia perdeu a sua pista: nem se sabe em que ano morreu a Várvara. Era, para além disso, a menos próxima ideologicamente às ideias leninistas, a que podia albergar maiores dúvidas sobre os porquês da atuação materna. Na minha versão dos factos, a Várvara suspeita se a sua mãe obraria como revolucionária apenas por pura entrega a Lenine.

A Inessa não quer pedir aos outros o que ela não gosta de fazer… especialmente com as pessoas que têm, em certa maneira, menos poder do que ela (como é  «serviço doméstico»).

Suso Sanmartin e Teresa Moure como Lenine e Inessa no Culturgal 2015

Suso Sanmartin e Teresa Moure como Lenine e Inessa no Culturgal 2015

Inessa Armand não foi nunca uma operária nem padeceu os problemas económicos que assolavam os seus camaradas. Savushka, a sua babá, não é invenção minha: está documentada a sua existência. A meu ver, os escritos marxista-leninistas, focados às grandes questões da economia ou do poder, esqueceram tratar o quotidiano duma perspetiva feminina. É algo que aprendemos com a devida perspetiva histórica; não estou a reclamar nada de Marx ou Lenine, simplesmente estou a constatar que a história continua e é lógico que alguns assuntos do político vaiam incorporando-se com posterioridade. Em todo o caso, uma coisa é dizer que a mais-valia que se assegura o proprietário dos meios de produção é o sangue do operário e outra, bastante diferente, são as contradições do dia a dia. Como é de esperar, a Nádia Krupskaia fazia as tarefas domésticas –ainda que tinha fama de descuidada– e não li em nenhum sítio que Lenine dedicasse tempo a esse tipo de atividades. É narrativamente coerente que a Inessa, com tantos filhos, tivesse que ocupar-se de muitas questões domésticas e que isso a preocupasse. Os bolcheviques eram modernos e subversivos, também no pessoal, no sexual e nas relações. Mas adoro a piada de que é coisa sabida que as mulheres complicam tudo quanto os homens inventam. A Inessa tem de preocupar-se por se é lícito, com a sua ideologia, mandar outros apanharem algo desagradável, como um pássaro morto. Provavelmente Lenine não tinha que atender a essa questão; não em 1917 e assim se reflete em Ostrácia. E, pensando bem, até poderia dizer-se que a Inessa e as suas criadas estavam a dar uma nova dimensão à luta de classes: a operária libertaria do seu trabalho a burguesa para esta poder libertar da sua condição a primeira. Esse jogo torna a libertação de classe numa cooperação bem articulada, para acabar com o mundo tal qual é conhecido: é a face humana do leninismo.

A informante sobre práticas BDSM que entrevista uma das protagonistas da novela, diz que as marcas no corpo são uma marca do amante e não quer que desapareçam. Quais as marcas mais prezadas da Inessa?

A Inessa está marcada a lume pela ideia de Verdade. A verdade obriga-a a ser marxista-leninista embora a suas condições de classe de procedência. A verdade obriga-a a ir-se embora duma relação cómoda com o seu marido ao se namorar doutro… mesmo não sendo o outro o casal mais recomendável do ponto de vista burguês. A verdade obriga-a a aceitar a decisão de Lenine e entender que ela não é a companheira ideal naquele momento, naquelas circunstâncias: a sua ferida é amar a verdade sobre todas as coisas.

E a Ostrácia, faz marcas deste tipo?

A Ostrácia da Inessa é um exílio voluntário, um não fazer parte do rebanho. Implica certa sabedoria, mais ou menos cética, a de saber-se rejeitada e, ao tempo, temida. Produz uma dor imensa, e um certo prazer intelectual. São marcas duras como todas as feridas mas têm algo, ao tempo, de estética e de ética, como uma boa tatuagem.

Hélène Jans e Inessa Armand. A primeira parece reclamar um jeito próprio de ocupar o interior livre de todo o esperado de qualquer lado. A segunda reclama o exterior. Têm muito em comum, mas também são complementares?

Capa de 'Ostrácia', de Teresa Moure

Capa de ‘Ostrácia’, de Teresa Moure

As duas são mulheres independentes e livres, que obram segundo o seu próprio ditado e sem obedecer convencionalismos, ainda que cada uma nas coordenadas do seu tempo. Hélène Jans é uma figura de que mal se conhece o nome. Era a criada dum livreiro em Amesterdão no século XVII. A invenção literária implicou reconstruir uma existência para ela e decidi que fosse a representante do empirismo face ao racionalismo do seu amante, Descartes, de maneira que torna uma mezinheira, uma mulher que sabe de plantas, que cura, que tem um conhecimento prático. O seu motor é o saber porque ela já não acredita no amor. No entanto, Inessa é uma personagem que trazia mais carga, documentação mais acessível que me obrigava a adequar-me às pautas históricas. O que eu fiz foi construí-la em torno da ideia do amor. A sua posição relativamente ao amor é o que distância as duas porque, com efeito, no demais as duas são intensas, autênticas e apaixonadas.

E Einés Andrade e a escritora que conhecemos em Ostrácia?

Devem de assemelhar-se bastante, sim. Provavelmente Einés Andrade era mais punk; tinha vontades de pôr o mundo de pernas para o ar. A voz autorial de Ostrácia é mais harmónica e mais esperançada porque sim acredita em algo, nalguma verdade essencial. Nesse sentido aprendeu a não escapar quando os acontecimentos se põem à contra e a controlar esses acontecimentos ao seu favor. Digamos que é uma voz autorial mais leninista…

São as protagonistas do que se anuncia como trilogia… alguma dica sobre as terceiras?

Mrs. H., a protagonista da terceira parte da trilogia, tem mais sentido do humor e maior ingenuidade. A sua história está parcialmente escrita. O assunto é se verá ou não a luz. Tenho a sensação de que o romance é um género esgotado. O pessoal não tem tempo para as histórias que duram; assistimos ao triunfo do micro-texto. Muit@s leitor@s dizem-me que quereriam ler Ostrácia mas que simplesmente não podem. É possível que devamos todos virar para o micro ou diretamente para a imagem e só fazer roteiros para videoclipes. Se a isso somares a dificuldade de receção do reintegracionismo, se calhar haverá que pensar em deixar terceiras partes para edições póstumas.

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